sexta-feira, dezembro 25, 2020

BOM DIA, SR GOUCHA



 O meu Manel vai deixar de dizer bom dia a Portugal. Para mim, como cidadão, profissional de televisão e amigo, esta despedida marca uma era. Mais de 25 anos a acompanhar o despertar de um país, a desembrulhar entrevistas, emoções, surpresas, sorrisos e lágrimas, tradições e memória. O Manel é um apresentador com a lembrança do tempo, a delicadeza da dedicação, a preparação de cada conversa como se fosse a primeira.

 Receber tantas manhãs um programa dirigido pela batuta deste homem, merece-nos um Obrigado. Um gigante obrigado. No seminário eu fugia para espreitar a Praça da alegria. Gostava do jeito como o Manel arrumava as palavras, com ironia, e um linguarejar tão criativo. Depois, trabalhei ao seu lado, 2 anos. Já a vida nos havia ligado. Ver o Manel fazer televisão, é assistir ao ensaio dos melhores espetáculos do mundo. Tudo é um detalhe importante. Da roupa à pergunta.

O Manel vai deixar de nos dizer bom dia, e tudo será diferente, porque é de manhã que nos ajeitamos para o dia que vem, e o Manel arrumava-nos a curiosidade, o saber, a estória da história, e lá íamos para o nosso dia, um pouco mais completos. Ter um profissional de televisão que se delicia com o trajar de uma minhota em romaria ao mesmo tempo que nos esmiuça o novo livro (que leu sublinhou) de um ilustre autor da nossa praça, isto tem um nome, grandiosidade intelectual; porque somos feitos de todas estas matérias, e pobres daqueles cuja vida passa ao lado deste todo.

Sempre gostei da vida de manhã, muito graças ao Manel, que me ensinou que o dia e a sabedoria aproveitam-se desde cedo. Obrigado Manel, por mais de 25 anos de bom dia  (estou certo que chega aos 30).

Porque hoje, dia 25 de dezembro, é o teu dia, e detestas despedidas e homenagens, este texto é só um obrigado e parabéns. És um homem a quem a VIDA não deve nada, graças a ti!!

Teu, Hélder

domingo, dezembro 20, 2020

QUANTO MAIS NU MELHOR

 


Os dias passam e as casas ficam. As casas, as árvores, os rios e o mar. São os permanentes. O resto das coisas da vida vão com o tempo. Aos 45 anos pergunto-me sobre o que me fica... na verdade sinto que resiste o mais simples, autêntico, frontal, cru e despido de papeis.

Já vos aconteceu? Precisarem de sentir a areia nos pés, a terra nas mãos, o musgo nos dedos, o vento no pescoço, a água na pele? Ou de vazarem os armários da casa, tirarem a tralha das prateleiras, das gavetas, da alma? Vazar como vaza a maré. Ou tomar banho no mar, nu, nu, mil vezes nu, até que a nudez chegue aos ossos?

No CAOS será sempre o simples e o despido que vencerão, até no cérebro das coisas da vida, acreditem.


Até já




domingo, novembro 22, 2020

O melhor do pior

 



Olá


Que dias estes, eramos tão felizes e não sabíamos. Agora passo, passamo,s mais tempo em casa, isolados, sem calor dos outros, sem a pele que se tocava e os beijos que dávamos, a torto e a direito. Agora até acho estranho quando vejo um filme onde há toque e cumprimentos... é, outros tempos.

Aproveito o tempo para purgar os dias, arrumar as folhas velhas dos vasos e da minha vida, deixar a luz entrar com janelas abertas, não vá o bicho me estar em casa, pelo menos arejo. Aproveito para me deliciar no tempo mais estendido, perder-me cá com os meus botões, arrumar e arrumar-me. Trabalhar na terra, fazer uma televisão distante, e voltar a casa, onde me sinto seguro e sempre em paz.

Sapatos à porta, sinto o meu chão, às vezes deito-me nele e deixo que a luz faça o resto, me recomponha. Chego cansado, cada vez que saio. Não sentem o mesmo? Andamos a fugir, alguns, de algo que nos pode derrubar o corpo. O melhor? Mais tempo, e usa-lo dignamente, com solenidade, porque o tempo é irreversível. Por isso, faço dele tudo o que a minha vida ainda me permite. 

Recomendo.


Protejam-se


Hélder

quarta-feira, outubro 14, 2020

ATÉ BREVE, PRAÇA DA ALEGRIA



É sempre difícil deixar a casa onde nascemos. Sair para voar, como se costuma dizer. Fui convidado da Praça da Alegria há 23 anos. Apresentei o meu primeiro livro de poesia, Rostos do mar. Era seminarista. Já saído do seminário voltei como convidado musical, com a minha banda Pólen. Se eu queria fazer televisão? Nem pensava nisso. Era vigilante no museu de Serralves, estava a acabar a minha tese de licenciatura em Teologia... e a fazer vida a partir do 0.

A minha amizade com o Manuel Luís nasceu entre entrevistas. Fizemo-nos amigos. As conversas sobre Deus e deuses... o silêncio... cinema com filmes que nos inquietam, víamos entrevistas de gente que nos emociona. E a amizade alimentava-se disto tudo. Um dia o Manuel perguntou-me se eu gostava de ser o empregado de mesa do programa... Eu? Claro que sim, o ordenado MUITO MELHOR do que Serralves. Ensaiei o uso da bandeja em casa ( nunca tinha servido à mesa), e lá fui. O empregado de mesa da Praça da Alegria, que servia cafés e laranjada e apresentava os carrinhos de compras do passatempo. A Praça fez o meu coração vibrar por conhecimento, humildade, evolução, história, amor. Tanto disto... é a tal casa, é a minha vida.

Nestes tempos de empregado de mesa muita gente ia acreditando em mim. Eu falava de modo claro e com boa linguagem ( um padre deveria assim ser). O público da Praça dizia-me que um dia eu iria longe. Eu? O empregado... nada disso, quero fazer o meu trabalho. A verdade é que fui voando, com muito trabalho, ensaios em casa, conselhos do Manuel ( o maior da televisão). E comecei com reportagens, e a ser empregado de mesa ( ao mesmo tempo), eu queria era trabalhar. De coração cheio, obrigado. Direção, administração, técnicos, produção, realização, maquilhagem, assistentes, câmaras, seguranças, técnicos de limpeza. Colegas e amigos! Todos me fizeram até hoje.

Uns 4 anos depois de começar como empregado, desafiaram-me a apresentar o programa. Eu? O que ainda tinha o avental guardado? Claro que sim, ora com a mulher mais doce da televisão, a Sónia Araújo, ora com a mulher de coração na boca e na pele, a Tânia Ribas. Sempre que o Jorge Gabriel não podia, lá ia eu, com dignidade, muito trabalho, e consciência do meu lugar, estava a substituir.. Meu Deus, que voltas da vida... A minha mãe deliciava-se, chegou a ser várias vezes convidada do programa, que linda senhora vaidosa de sentimento pelo filho, e eu feliz com a alegria dela.

Tornei-me o repórter. Um dos primeiros repórteres de entretenimento da televisão, eu e a Tânia Ribas. E assim fui, uns bons 20 anos. A fazer muitas outras coisas em TV, mas com a gana de repórter, esse género televisivo tão nobre, onde vamos à casa e à rua de quem nos vê. As festas onde estive, as feiras, as viagens aos portugueses emigrados, as histórias de vida, os sorrisos, as lágrimas. Devem imaginar... todos os dias, uma terra diferente, uma nova história. Caramba... era o coração sempre em vibração. Tanta gente linda com quem trabalhei, tanta gente maravilhosa que entrevistei.

Este ano foi ano de dizer adeus à Praça da Alegria. E lá ficou a casa, cheia de luzes e aplausos, e sigo caminho. Pleno de gratidão por quem me deu a mão no caminho ( os que sabem que fazem parte da minha história, e que olhei nos olhos e agradeci vezes sem fim). Mas ninguém faz a vida como nós mesmos, afinal ela é nossa. E há sempre um ou outro a quem falta agradecer, aqui fica. Para sempre.

Fico-me pela gratidão. Não olho muito para trás. Para quê? Só para lembrar a minha mãe, acho que é a única vez que o pescoço da minha alma se vira para trás. De resto, perdi toda a saudade que tinha pelo tempo da minha vida.

Agora digo-lhe boa tarde, todas as sextas feiras, no programa da minha Tânia Ribas. Uma equipa nova, e que parece que já lá vivo há muito. Vou contar histórias, de gente que nunca ouviu, de gente que já viu algumas vezes. Não são entrevistas, são conversas pelos campos da vida, sem complicar, só deixar rolar as palavras. Como eu gosto e sempre quis fazer. Com tempo e calma. Mais gratidão. A vida é um extraordinário presente. Sempre. Obrigado.


Até já

segunda-feira, setembro 28, 2020

TEMPO. TER TEMPO PARA UM TANGO

                        

                                    ARGENTINA, DANÇA COM FRANCISCA


Às vezes, a vida anda tão rápido. Não sentem? Os filhos crescem, os avós morrem-nos, os pais também. O netos e filhos dos amigos tornam-se adultos, quando parecia que ainda os tínhamos ao colo. Tempo, é o mais precioso da vida. Tempo para viver, observar, cultivar, esperar, construir, amar. Está tudo no tempo. De que nos vale o amor, se não lhe dermos tempo. O mesmo se aplica à amizade, às coisas que gostamos, às nossas plantas, aos nossos amados, à nossa saúde. Tempo.



Darem-nos tempo é o melhor que se pode ter. Tempo para nos ouvirem. Para nos curarem, para nos amarem. Tempo para sarar. Tempo para ver piada na graça. Tempo de silêncio. Tempo para dançarmos com a vida. Às vezes, muitas vezes, cá em casa dançamos, com tempo, e sorriso na alma.
Ter menos, na minha vida, tem significado ter mais. Ter muito mais. Com dores e alegrias no saco, mas com tempo para as desenlear. Percebem-me? Desenlear a vida, para que ela não seja complexa, e tenhamos sempre vontade de voltar a casa, e nunca de nos perdermos no caminho.


até já

segunda-feira, agosto 24, 2020

NUNCA HAVERÁ TANTO ESPAÇO COMO NUMA PRAIA

 

                                                                                             CUBA CAYO SANTA MARIA

Nasci na praia de areia. Insuperável a sensação dos pés na areia, das mãos na leveza do que já foi rocha. Há dias, entre amigos, discutíamos as praias de areia e as de rocha, vantagens e desvantagens. Para mim, é não conversa. A areia tem uma leveza de ar, só que colocada nos pés. Não há preço para tamanha liberdade. Quando era miúdo vinha carregado de areia da praia, a minha mãe ria-se comigo, por eu gostar tanto de trazer a praia para casa. Eu sei, dá trabalho a tirar de casa, mas dá tanto prazer senti-la nos pés, nos calções e na alma. Vai tudo parar à alma. Hoje continuo igual, trago quilos de areia para casa, e não me esforço por deixa-la longe de mim.

Caminhadas intermináveis no areal são um banho meigo em alecrim e laranjeira. Nunca nenhuma praia de rocha me dará isso, porque é impossível caminhar nessas praias. E a rocha nunca amansou o coração. Já a praia de areia, nunca encontraremos tamanho espaço, candura e beleza.



até já



quinta-feira, julho 02, 2020

O QUE ME DÃO OS DIAS SEM TI






Gostava de passear-se pelo jardim e de tocar nas suas flores, que eram como que a sua voz com raiz. Enquanto as observava, deixava que o sol lhe escorresse pelo rosto, aumentando o brilho dos seus olhos. Era uma mulher que gostava da luz pelas janelas e de flores em cima da mesa. Até os seus vestidos tinham flores, das pequenas, e que ela havia moldado e costurado numa das madrugadas dos dias que já passaram. Levantava-se cedo. Dizia-me que é cedo que acorda a vontade de viver. Durante o dia rodopiava-se pela terra e pela casa, que era branca; ao fim da tarde cheirava a maresia no jardim, e muitas vezes a via parada a respirar-se, porque nem sempre a vida lhe permitia grandes pausas para lufadas de ar. Nesses momentos, sentia-a tão perto da perfeição, entre o mar e os jardins em flor.
Porque a vida pode ser feita com o melhor do passado.

Para a minha mãe. 5 meses sem ti.

terça-feira, junho 02, 2020

AFINAL ESTÁ TUDO IGUAL






Dizia-se que as pessoas iam ficar diferentes, com menos rasgos na alma e azedo no sangue. Dizia-se até que íamos olhar mais nos olhos e valorizar a pele dos abraços e das mãos. Cheguei a ouvir que nunca mais a vida seria a mesma. Mas parece que não, a nossa alma não aprende tão rápido assim, e a solidão continua sozinha, a política continua vaidosa, as pessoas não ouvem e falam muito, a correria parecia ser uma necessidade. E... cá estamos nós quase pós pandemia e a sermos os mesmos de sempre, com mais histórias para contar.
Os enfermeiros e médicos, quando tiverem as suas lutas, vão ser coisas deles e não de todos. E a vidinha avança, porque um problema só é problema se me bater à porta. Pior ficam os que lhes morreram pais, filhos, primos, amigos, amores. Esses ninguém os lembra, porque a dor é uma coisa que só se sente no corpo da outra gente, se não for nossa.
É, voltou o trânsito, as filas, a moda e a desmoda. Voltou quase tudo ao normal, menos para aqueles cuja vida parou, num sopro, durante meses, ou então se diluiu entre hospitais, batas e máscaras. Somos os mesmo no mundo todo, aqueles que matam em nome da segurança, mesmo que a morte tenha cor.

quinta-feira, maio 07, 2020

SOBRE O VENTO




Não gosto de vento. Incomoda-me o desalinho, o desconforto, o quase que gemido à porta e à janela. O vento é a melhor expressão de frio, tristeza, abandono. Isola-nos das coisas. Parece leve, mas é pesado, cortante. Estraga momentos, apaga velas, levanta saias e cortinas, derruba a altitude, despenteia cabelos e ideias. O vento é o estado de natureza mais parecido com as pessoas arrogantes, egoístas e inconvenientes.

Tudo é diferente com a brisa, essa amansa-nos a alma, beija-nos o temperamento, suaviza-nos a criação, transporta-nos o pensamento, estimula o sorriso. Como as pessoas generosas, atentas, que dançam sozinhas e andam descalças, na humildade do pé na terra e do coração desapertado de espartilhos. 

Espero que um dia as pessoas se revelem vento e brisa; a natureza terá muito mais comunhão com a humanidade.

até já

terça-feira, abril 28, 2020

UM TEXTO COM PRONÚNCIA



Quando comecei a fazer televisão, queria ser o melhor e que o país me conhecesse. Ocamente queria ser o melhor empregado de mesa da TV, como se isso me fizesse gente. Depois quis ser conhecido, como se isso determinasse a minha identidade televisiva. Felizmente caí na terra a tempo. Passados 20 anos, quero fazer bem o meu trabalho e que em cada momento televisivo eu consiga transmitir algo de bom, construtivo, edificante, tolerante e inspirador. Eu sei, sonho alto. Mas para que servem os sonhos, se não acompanharem o voo dos pássaros.

Tenho pena que em alguma televisão que se faz o compromisso do entretenimento e informação se confundam com espetáculo de palhaços tristes, mas pintados com largos sorrisos. Se use e abuse dos sentimentos de fragilidade, de vidas simples, de sotaques que ao invés de serem genuínos, são forçados e ridículos, e haja um certo orgulho em ser-se arrogante, ignorante e quase que bobo de uma corte, que já não existe, a falar de um país que já não é assim.

Somos um país diferente, sabem? Em trás os montes não há só velhinhos vestidos de negro, com muito respeito pelos que ainda existem. No Minho não se toca só concertina à desgarrada, no Alentejo não existe só sestas e calor, o algarve não fala inglês em vez de português. Somos um país diferente, e tenho pena que alguns portugueses, por uns trocos, vendam a sua identidade para fazer espetáculo, e as televisões peguem neles e os coloquem como que embaixadores de uma região. Tenho pena que a informação, seja, por vezes, mais centralista que os nossos governos. Tenho pena que os sotaques sejam ainda vistos como “ modos tão giros e super diferentes de falar, ai eu adoro!!!” Só falta mandar amendoins para as gentes de outras bandas, para tocarem o sino, como se fazia no zoo em Lisboa ao elefante carismático; ainda bem que o tempo também aí mudou.

Mas também me agonia apoiar-se que venham habitar o interior, cheios de regalias, como se fosse um exílio a que se marcham, e quem vive nessas terras e lugares continue a trabalhar, sem incentivos por não ter deixado para trás a sua terra. Caramba, é assim tão difícil de ver o todo em vez da parte?
O circo que se monta à volta das pessoas e das terras que heroicamente são fieis a si mesmas, é triste e de profunda ignorância e quase xenofobia cultural. Igualmente triste é que é dessas terras e lugares que surgem algumas personagens televisivas, e que têm uma certa vergonha do seu ser, e assim se vendem, como se a identidade tivesse um preço, e fosse a televisão lavar o que as pessoas sempre serão, de onde vêm, e para onde irão. Para onde irão? É o que gostava de saber.
É isto. Mas viva a liberdade!

quinta-feira, abril 09, 2020

UM CASO COM A MINHA CASA





A casa. Eu sou dos da casa. Gosto de fechar a porta. Olhar para as minhas divisões e sentir nelas a minha vida. Tive 3 casas. A dos meus pais, na praia e com o que tudo isso me trouxe, um pequeno apartamento alugado, que marcou o início da minha vida emancipada, e o apartamento onde vivo, cheio de luz, plantas, horizonte de mar. É a biografia das minhas casas. Vivo nesta última há uns 17 anos, perdi a conta. Tudo o que ela tem fala de mim, ou foi feito por mim, ou trouxe de um momento e de um lugar ou teve a mão de alguém que gosto muito. Em casa escrevo, faço ginástica, amo, crio, leio, faço silêncio, ouço discos, crio plantas, guardo a luz. É, na minha casa guardo a luz, encho-me de brilho para sair dela feliz, e a ela voltar com aquela necessidade de recarregar.

Viajo muito, e tenho sempre saudades da minha casa, e imagino como ficariam as coisas do outro mundo em minha casa. Honestamente, acho que tenho um caso com a minha casa. Vibro com as folhas novas do bonsai, ou do jasmim, as novas peças de oleiro que coloquei na janela, as memórias da minha mãe que vou dando moldura, para que me cumprimentem muitas vezes. Adoro ver a luz entrar nas portas das minhas varandas e adivinhar-lhe as horas, mornas. E da chuva, como é bom ouvir a chuva de dentro da minha casa, enquanto a lareira me avisa da sua crepitada presença. E como gosto de guardar decorações antigas e depois busca-las e troca-las pelas que estavam, sair de casa, e entrar logo, e olhar para tudo com um espanto renovado, como se fossem coisas novas. A minha mãe fazia o mesmo, e ria-se tanto com ela mesma. E eu rio-me tanto comigo mesmo.

Na minha casa as luzes de natal estão acesas todo o ano, a lembrar-me Paris e Londres, nos cafés e restaurantes onde tantas vezes me perdi à procura de cada detalhe. Mas, essencialmente, porque gosto do Natal. Não sei o deste ano, sem a minha mãe, acho que vou saltar a época. Logo vejo.
Na minha casa recebo quem gosto, visto-a para receber e lá ando eu a rodopiar pela casa porque ela vai ser vista e tem de estar bonita, e na cozinha os aromas ganham-se de vida e carácter. É isso, carácter, é o que gosto na minha casa. Fala em nome próprio. Móveis desenhados por mim, outros resgatados do tempo, ou com assinatura de criadores que gostei. É para isto que serve uma casa, para falar da nossa alma, da nossa história pela terra. Das nossas geometrias emocionais. Não quero saber se não gostam da minha casa, mas adoro que a elogiem, até acho que ela dá um pulinho de alegria, como que a dizer-me: vês? Gostaram de nós. Se tenho a casa que quero, claro que sim, porque ela tem tudo o que o meu tempo precisa.

A casa é, nos dias de hoje, o meu ventre, o meu colo, o peito que me abriga. Da minha varanda vejo o mundo, e quando não vejo tudo, saio, mas para voltar rápido, porque na minha casa, a luz, é um espetáculo sempre diferente.


quinta-feira, abril 02, 2020

SAÍ SEM O MEU SER




Saí cedo de casa. Deixei o ser à mesa. O sol entrava desleixado pela janela. O ser ficou sentado. Ficou bem.

Saí leve de mim. Percorri caminhos verdes, azuis e limpos. Essencialmente limpos. Da vida só quero o que me baste, aos olhos e ao coração. Regressei a casa. O ser estava à janela. Porque era meu, partilhei o que recebi do caminho. Achamo-nos mais inteiros, um do outro.  


Até amanhã.

Quarentena abril 2020

terça-feira, março 31, 2020

AS MÃES NÃO MORREM, NÃO DEVIAM MORRER!



Morreu-me a minha Margarida. Deixei de ser filho. O mundo avança à minha volta, apetece-me perguntar: como se atreve a continuar, se a Margarida morreu? E continua, e continuará a girar, porque a todos os momentos morrem Margaridas, e porque a minha respiração não se alimenta de intervalos, e porque a vida é mesmo assim, morre-se e continua-se, morre-se e continua-se, repetidamente. Porque o que de mim morreu com ela, dará lugar a outros nascimentos. A minha doce amiga Marta disse-me que estar triste também é uma homenagem... quero acreditar. Viver o luto e este isolamento, é das experiências mais desconcertantes, introspetivas e reveladoras da minha vida, mas a vida vai-nos amansando a dor. A vida destes dias é mesmo isto, adoecem, morrem, e nós temos de continuar, nós os que ainda não padecemos, achando que ainda está longe de nos bater à porta. Deixo-vos o texto que escrevi para o funeral da minha Margarida. Porque sou escritor, e fui filho, e este não é um sentimento só meu.


A minha mãe teve o melhor nome que a vida lhe poderia dar, Margarida. As margaridas são flores simples, e com rosto feliz. Na entrada da nossa casa a minha mãe plantou margaridas, eram as melhores boas vindas a quem entrava. Sou o filho mais novo da minha mãe Margarida, tive a sorte de ter uma mãe madura na vida, experiente no sentimento, tive-a perto de mim durante 44 anos, que bênção. Somos 5 filhos, tivemos a felicidade de sermos amados por uma mulher que foi professora, ainda há alunos que a chamam de professora, costureira, agricultora, dona de casa, uma cozinheira de mão cheia, apicultora, mulher e mãe. Sempre mãe. Cheia de vidas.

Amava rir, lembro as gargalhadas que dava, fechava os olhos de tanto rir. Não fosse ela nome de flor, era uma apaixonada por flores, e como ficava triste quando alguma lhe morria. Flores do campo, orquídeas, estrelícias, avencas, suculentas, rosas, catos e próteas. O meu pai bem que lhe pedia para fazer no jardim uma horta, mas nunca conseguiu tirar-lhe o lugar das flores. Tivemos um cato que viveu mais de 20 anos, era regado com amor, em doses suaves.  Gostava de poesia simples, de música serena, de pessoas que falassem baixo, nunca gostou de gritaria e confusões da vida. Era uma mulher da terra apaixonada pela praia, os melhores verões eram os que íamos os 2 de bicicleta até beijar o mar. Ainda há pouco tempo me dizia: as ondas são um mistério tão grande. E perdia-se a olhar para elas. A praia agora é menos praia porque a Margarida não está lá para olhar o mar.

A minha mãe, era uma mulher simples, e sabemos tão bem como é difícil e sábio, ser-se simples num mundo tão complicado. O meu amigo Nelson ensinou-me que uma mãe não morre. Ainda não aprendi bem esta lição, mas sendo assim, até já mãe Margarida, doce Guidinha, como lhe chamavam quem lhe conhecia o coração. Obrigado, por tanto amor, serenidade, resistência, humildade, sabedoria e paz. Até já, mãe.

sábado, março 21, 2020

E QUANDO A PANDEMIA PASSAR?







Quando passar esta pandemia vamos perguntar-nos se ficamos na mesma. Como cidadãos, maridos e mulheres, filhos, trabalhadores, artistas, empreendedores, cuidadores, clínicos. Se o limão apanhado no jardim terá o mesmo sabor? Se a saída à praia vai ter a mesma intensidade, se o abraço vai saber a gesto ou a músculo? Iremos perguntar o que realmente importa? Quem realmente importa? Para que é que, realmente, nos importamos?

Ou, somos todos de memória curta, e só muda no primeiro mês? É o mais provável. Exceto se nos morrerem com este vírus, vamos esquecer. Acho que é o que vai acontecer, a não ser que nos mordam, esquecemos sempre que os animais podem ser violentos.
Dar a mão vai ter mais pele do que emoção? Será? Vamos prevenir mais do que remediar? Acho que não, mas gostava que sim. Precisamos muito de colocar no topo da lista as pequenas coisas, diminuir nas listas de compras e ler mais poemas, romances, livros. Precisamos de viver mais a casa, a mesa, a cama, quem nos faz família. Precisamos do silêncio. Sem raivas de barulho. Precisamos de nos colocarmos inteiros nos sítios, e não a metade.

Na verdade, necessitamos mesmo de parar, dentro da casa para a qual trabalhamos a vida toda, e usufrui-la, acompanhados, sozinhos, sem medos, nus em frente aos nossos espelhos e dizermos: eu sou assim, neste lugar que é meu.
Precisamos de comer peras e de lhes sentir a textura, caminhar descalços na terra, colocar areia na boca e beber água do mar. Precisamos de falar com as árvores e esperar as respostas, que podem tardar. Precisamos de fugir dos lugares comuns, cheios de todos, loucos por preencher cada bocadinho de silêncio e de espaço vazio. Precisamos de rios mais puros, ar mais fresco e limpo, mares mais azuis, como o céu.

Ainda estou a fazer o meu caminho neste desapego do que me distrai, de quem me distrai. Fiel a mim, em nome do amor do que me vai restar quando tudo isto passar.
Saúde, muita saúde para todos.


segunda-feira, março 16, 2020

Um bocadinho de silêncio, em nome da cura



Nunca sentimos tanta falta de abraços, de mãos, de olhares, de colo, de toque da pele com pele. Porque nunca pudemos tão pouco como agora. Ainda há um mês que nos abraçávamos antes do jantar com aquele grupo de amigos e dávamos a mão no concerto, quando acontecia aquela canção. Tudo muda tão rápido. Já viram? E só queremos saúde para poder viver os abraços de novo. E tudo se resume à essência. Não há economia sem pessoas. Não há empregos sem pessoas, nem fronteiras, nem hotéis e restaurantes.
A humanidade precisa de humanismo para se cumprir. Precisa do amor da tolerância, da consciência que ao dividir tudo chega para todos; a humanidade precisa de atenção, de compaixão, de humildade, de silêncio. A humanidade precisa de gente que se cale porque estamos fartos da sabedoria saloia. Calem-se um pouco. Deixem a vida acontecer e contar ela a história. Não estamos em época de grandes risos e festarolas, o mundo luta contra a morte, nós fugimos da morte, da nossa e daqueles que amamos. Temos medo que não chegue para todos, que não chegue para nós, e para os que amamos. Então? Porquê os risos forçados, aturar os comentadores que até aqui desacreditavam os dias que vivemos? Eu não quero fatalistas, mas também não quero os falsos da esperança que vociferam umas palavras cheias de clichés para ficarem bem na fotografia, de um dia que não sabemos se será melhor que o de amanhã. Calem-se, só um bocadinho. As televisões, as rádios, a internet, todos falam demais. Precisamos de serenidade, e não de camuflar a verdade com uma alegria tonta. Ouçam música, leiam poesia e romances, aproveitem o sol na pele, os rebentos das árvores, o vento que nos entra pela janela. Olhem para aqueles que amam. Plantem flores em vasos novos, e calem-se um bocadinho. O mundo, a humanidade, precisa de silêncio para se sarar e concentrar na cura. Haveremos de voltar aos abraços. Vão ver. Mas para já, recolhamo-nos, porque o mundo não está para solenidades e cortesias.


Resguardem-se e confiem. Estejam atentos a quem vive perto de vocês e cultivem o silêncio da confiança.


Hélder

quarta-feira, fevereiro 26, 2020

NÃO HÁ AMOR SENTADO



Para que nos servem as cantigas se não forem para habitar os cantos do coração? Para que nos serve a ponte se houver medo de a atravessar? Para que serve o sol, se não for para nos beijar? Para que serve a árvore se não for para a igualar? Para que serve a pergunta se não for para responder?

Hoje há o medo de questionar, e sabemos o quanto o medo paralisa a boca e o pensamento. Perguntar é o exercício mais nobre, inteligente e livre. Não há inquestionáveis. Para que nos serviria a liberdade, se não fosse para a interrogar sempre, para afugentar o risco de a prender, porque nem um louco pode prender o amor. Porque é disso que se trata na vida, amar. Mas quem ama não pode amar sentado, ao modo de: se precisares de mim, já sabes, estou aqui. Na verdade, isto não é nada. É o mesmo que ter a ponte à frente e preferir tentar passar a nado.

Não há amor no que ama sentado.

Até já.

Hélder

sexta-feira, janeiro 17, 2020

AS MÃES DEVIAM TER SÓ NOMES DE FLORES



                                                                                         o meu alecrim já em flor

Não gosto da expressão melhor mãe do mundo. Não as há. Porque ser mãe é um ofício de alma e corpo, que falha, que se adapta, e que se arranca da carne da alma. Nem sempre são perfeitas, ainda bem, falham, felizmente, para que nós possamos ser gente com espírito crítico e capacidade de assumir erros e fragilidades. Mas, todas as mães deveriam ter nome de flor. A flor é dos acontecimentos mais nobres da natureza. Muitas anunciam a primavera, outras preconizam o inverno, há as que surgem uma vez por ano, as de uma época inteira. Numa flor um fruto, ou uma caixinha secreta de pólen e fertilização. A maçã é o receptáculo floral, tal como o morango. O figo é a flor da figueira. Há flores que se resguardam à noite, ao toque... tantas magias. Numa flor a bondade de um arranjo na natureza, para que o campo seja uma imensa mesa bonita e bem posta. E há lá coisa de mais amor que uma mãe pode querer para a sua casa?

Tenho a sorte de ter nascido de uma Margarida. Flor singela, suave, delicada, mais resistente do que parece, e a lembrar a liberdade do campo. Nunca seremos tão livre como no campo e na praia. A minha mãe sempre teve margaridas à porta de casa, seriam as boas vindas! O mais importante é que sempre lhe conheci margaridas no coração.

Até amanhã

Hélder