quarta-feira, fevereiro 20, 2019

O ESPÍRITO DAS COISAS


Que nome dão a cada coisa da vossa casa? São só coisas, ou são a memória que se aviva, a energia de um tempo passado? Esta chaleira da fotografia, era onde a minha mãe fazia o café da manhã, durante uns bons 40 anos. Há tempos ela decidiu desfazer-se dela, quando eu soube, corri para o lixo e só parei quando a encontrei, perdida entre restos de vidas. Lá estava ela, a cafeteira que me ensinou o sentido das manhãs, do acordar cedo, do café delicado e rigorosamente medido, com amor e cevada! Como posso eu olhar para este objecto e chamar-lhe chaleira?! Não, esta chaleira é a manhã ensinada pela minha mãe, a vontade dilacerante de começar os dias, vencer dores e problemas, sorrir para os primeiros raios de sol.

Sou teólogo de formação e academicamente jornalista. Ou seja, a fé inundou-me o conhecimento, e a inquietação da duvida e da curiosidade enchem-me os dias. Nunca embalei nas energias das pessoas, muito menos na dos objectos. A única energia que o mundo se me apresentava era a de Deus e da Fé. As voltas da vida. Hoje, a minha fé no divino multiplica-se pela energia radiante, ou não, de algumas pessoas, e rodeio-me de objectos que espicacem a corrente positiva da vida; objectos que me falem directamente à mente e ao coração, me despertem boas memórias e com elas boas vibrações, mesmo de um passado que nunca regressa ao ponto de partida, mas que me foi fascinante, num determinado dia e lugar. A espiritualidade tão metafisica que me ensinaram na teologia clássica, converteu-se também em poemas, fotografias, quadros, músicas, rendas, móveis, roupa, livros, e esta chaleira. Cada uma das minhas coisas só tem sentido na minha cronologia espiritual e carnal, e são essas coisas que me alimentam o maior dos meus segredos e tesouros, a memória. E se Deus nos fala ao subconsciente, as coisas de amor falam-me à memória. 

Por isso as coisas que têm historia, têm também espiritualidade, porque não pode haver transcendente sem haver objectos que reflictam o que a mente quer conhecer. Uma casa não é acolhedora pelo que compramos para a encher, mas pelas coisas que ela tem de espiritual e de memória. As coisas da nossa vida e que só fazem sentido na nossa mesma vida. Falam de nós. E sim... já entrei em casas belissimamente decoradas e soaram-me a vazia e geladas, algo falhou na ordem das coisas. Podemos comprar tudo, menos as coisas que reflictam memórias energéticas de momentos felizes e únicos. Honestamente, até podem ser momentos menos felizes, sabemos que de tristeza também nos erguemos.

Sophia de Mello Breyner, escreveu em 1972 o magnânimo livro: O nome das coisas. Com ele aprendi a importância da Grécia, dos deuses, do trigo, da solidão, da revolução, dos retratos e dos museus. Ela nomeou espiritualmente as suas coisas. E eu só a percebi 20 anos depois de a começar a ler. As coisas têm um nome que vai para além do próprio nome, e sem elas vem a maior das solidões.


                      CORTARAM OS TRIGOS. AGORA
                      A MINHA SOLIDÃO VÊ-SE MELHOR

                                            SophiaM.B. Andresen in O nome das Coisas

domingo, fevereiro 10, 2019

SOBRE A MÚSICA DE MIM






        

       




A música nasceu na minha vida, quando me apercebi que as palavras podiam ser um som harmonioso, musical. Um poema cantado é das expressões artísticas mais plenas que posso consciencializar.
Estudei canto gregoriano, e aí, ao ler uma pauta, apercebi-me da força de uma sílaba dita com a escala de uma nota, numa sintonia de vozes, cantadas por gente que nem sempre estava em plena harmonia. Cantar uma peça de gregoriano na Sé Catedral do Porto, é das experiências mais conciliadoras que alguma vez experimentei. Deus despojado de arranjos.

Quando abandonei a minha vocação, a música continuava a vibrar-me No sangue, estudei canto na escola de jazz do porto, tive professores de todo o mundo. Aí apercebi-me da universalidade da música e da identidade da mesma. Uma professora alemã, de uma rigidez atroz, onde a regra fazia sentido. Ou era ou não era, como na vida. E uma doce professora brasileira, de candura no poema a lembrar uma Elis de sempre. A minha banda, Pólen, surge por estes anos, já lá vão mais de 20. Pelo caminho estudei piano e guitarra, um péssimo músico instrumental!

A música era a parte mais expressiva da minha comunicação. Anos mais tarde estudei canto à capela, quanto menos, melhor. Eduquei a afinação. Ouvi-me. Há um autismo de discurso que perdemos quando ganhamos consciência da voz. Dei o tempo necessário e passei para para canto lírico, sempre fui barítono, havia que abrir os pulmões e explorar a minha cabeça, como difusora de som e não só de ideias. Tornei-me caixa da minha própria voz. Eu era dos que falava baixo. No lírico aprendi que o corpo não é o que te define, é a tua voz, chegar ao fundo da sala sem gritar, colocar-me na acentuação musical certa e determinada. Ainda uso esta técnica para fazer televisão e para ir ao mercado, temos de saber o que queremos, muda a escala!

Anos mais tarde voltei ao jazz, mas com aulas privadas, queria um professor a olhar para mim e dar-me o ritmo libertino, africano e americano, das boas regras do jazz. Educar a abertura de boca, a colocação da simplicidade nas palavras, um despir-me de adereços. E eis-me no ponto que sempre quis. Faço da minha voz o que quero, como quero. Sei dos meus limites, sei da minha estética vocal, conheço o meu aparelho. A música, tem menos palco nos meus dias, mas ganhou mais ouvido, mais recato. Nem sempre ter é conquistar. Sou mais homem, na plenitude da humanidade e espiritualidade que me constitui, porque sou músico. Não pelas músicas que fiz, poemas de musiquei, ou palcos onde cantei; sou mais porque pela música percebo o silêncio, o único lugar a partir do qual a música e a vida se compõem. 

Abraço

HR