- O que fica quando dás?
- Ficam as mãos.
- Mas se dás as mãos com que mãos voltas a dar?
- As mãos voltam a crescer, para darem de novo.
- Portanto, o que dás não é o que está nas mãos?
- Não, isso é só para embelezar, o que dou são, mesmo, as minhas
mãos. Mas como estão velhas, coloco-lhe sempre coisas bonitas. As pessoas
precisam de coisas bonitas para animar os dias.
- E as mãos que dás nunca te fizeram falta?
- Às vezes fazem, e peço umas a quem gosto.
- E nunca deste à pessoa errada, ou
que não merece?
- Isso já não é da minha responsabilidade. Eu
dou. Depois, não depende das minhas mãos; isso já compete às mãos que recebem,
o saber receber. Não basta precisar...
- Está bem, e se não precisarem, nem souberem?
- Provavelmente deixarão de receber. Ou não.
Enquanto se dá não se pensa em mais nada
- E deram-te sempre as mãos?
- Já me aconteceu ficar muito tempo sem mãos. São dias
tristes. Mas fica-me a felicidade por ter dado. Quando volto a receber mãos,
dou-lhes mais valor, pela ausência que lhes senti, e redobro a vontade de dar,
porque nunca sabemos o que não fizermos, nem dissermos.
- Isso é interessante, mas um pouco bizarro. E o que recebes
por dar?
- No início queria sempre algo em troca, com o tempo aprendi
a esperar que a felicidade chegasse.
- Que felicidade?
- A de dar livremente. Dar o que nos faz falta, o que até
queríamos para nós, o que vem do nosso âmago, o que nos esvazia o peito. Dar e
só esperar pela felicidade.
- Mas ela pode não vir.
- Muitas vezes não vem, é verdade. Mas estou a aprender a
esperar mais. Cada dia mais. Quanto mais souber esperar, mais saberei dar. A
espera é a mais sapiente das ciências. Esperar é saber responder, saber
respirar, saber cumprir a generosidade, a paciência, a observação. Há um
pássaro chamado andorinhão preto e que voa 10 meses seguidos, à procura de um
novo destino. Esperar a voar! A forma perfeita de qualquer espécie de espera!!
- Impossível para nós.
- Se só se te achares nesse corpo, sim. Mas se cultivares a
profunda dimensão da tua mente, és capaz de conseguir.
- Acho que caia.
- Tens de emagrecer os teus pensamentos, eles são o mais
pesado que há em ti.
Legenda
da imagem. A minha bota de
quando tinha 2/3 anos. Perdida numa arrecadação. Foi-me dada pelo meu pai num
dia de primavera e de muita luz. Encontrou-a sem querer, e arrumou-a num lugar
à chuva e ao vento, onde eu a via sempre, e não lhe dava grande significado. Esperou
que eu percebesse o sentido da bota com a qual aprendi a andar seguro, a fazer
caminho. Esperar o momento para dar, e que se perceba o sentido limpo da
dádiva!
Tratamento de imagem: David Reis